Texto: Jade Lopes Gomes
Foto: Maria Julia Magalhães
Passei parte da minha infância no interior de São Paulo, mais precisamente na cidade de Araçatuba. Minhas memórias mais vívidas são as tardes ensolarada de brincadeira na rua, no quintal de terra do vizinho, procurando bichinhos nos formatos do bolinho de chuva com a minha tia-avó e das andanças pelo bairro com o meus irmãos e nossos amigos. Mudei para lá quando tinha dois anos e voltei para São Paulo perto de completar sete.
Falam que quando a criança tem muita cicatriz é sinal que brincou bastante. Eu sou cheia. Cada uma me faz lembrar exatamente do dia que aconteceu. Tenho uma no queixo que foi caindo de bicicleta. Estava euzinha no cano da bicicleta do meu irmão quando ele decide me mostrar uma nova conquista: andar sem as mãos. Claro que eu como grande medrosa de sempre fiquei morrendo de medo, segurei o guidão muito forte e virei ele pro lado. Este movimento todo resultou na nossa queda, em 10 pontos no meu queixo e uma pedra dentro do joelho do meu irmão. Eu chorei bastante e assim que entendi o que aconteceu corri pro banheiro pra descobrir se pelo corte eu conseguia ver
o meu maxilar exposto. Não deu muito certo... Era só sangue e carne mesmo.
Para nós, era muito comum andar pelo bairro para ir no mercado, no barzinho comprar refrigerante, na escola buscar minha irmãzinha com 02 anos na época... Brincar na rua sempre foi muito natural e gostoso para nós.
Quando nos mudamos para a cidade tudo mudou. Eu não entendia porque aqui não podíamos brincar na rua e o que restou para mim foi ficar olhando a avenida movimentada da sobreloja que morávamos e brincar na laje. Eu estudava longe de casa e o ponto final da perua do governo era na rua de casa mas aqui eu não podia mais voltar sozinha. Minha mãe me levava e buscava.
Parece que essa cidade era muito perigosa e eu não entendi muito o por que.
Se aqui as crianças não brincavam na rua elas brincavam onde?
Naquele momento da minha vida, para as brincadeiras restaram os espaços privados e o ambiente escolar, pois a rua eu havia perdido. Na escola e em casa com os meus irmãos a brincadeira rolava solta também. Passou um tempo e me mudei com a minha família para o apartamento onde minha avó morava. Lá as coisas eram diferentes. No prédio haviam muitas crianças e todos os dias juntávamos a turma para brincar. O interessante do prédio/condomínio é que a concentração das famílias permite a interação de várias idades na brincadeira. Eu adorava brincar de esconde-esconde, pular corda, casinha, verdade e desafio... Tinha dias que a gente só se encontrava para conversar e contar histórias, outros para estudar as lições da escola ou para dançar a coreografia do rebelde em cima da cama dos nossos pais. Eles ficavam muito tranquilos por estarmos brincando no prédio e era ultra proibido pensar em sair de lá sem a presença deles. A gente sempre dava um jeitinho jogando a bola pelo muro só pra poder dar uma respirada do lado de fora.
Aos nove anos fui para escola de música com a minha irmã. Minha mãe começou a trabalhar quando eu tinha uns 12 anos e eu e minha irmã começamos a voltar sozinhas para casa. A escola fica localizada no Largo
General Osório no centro de São Paulo e nós morávamos na zona norte na Freguesia do Ó. Saíamos da escola e caminhávamos até a Avenida Rio Branco, caminho conhecido por nós que andávamos tanto por lá, para pegar o ônibus para casa. E íamos andando do ponto de ônibus até em casa.
Se tornou natural novamente andar na rua. Mas a rua não era a mesma. A rua era suja, cheia de pessoas desconhecidas, todo mundo correndo, segurando seus pertences e sem olhar para os outros.
A partir de então, sempre fui e voltei da escola sozinha para casa. No ensino médio fui estudar no centro da cidade. Neste momento, fui conhecendo mais os espaços para além do meu caminho casa-escola. Descobri praças para tomar sol no fim da tarde, a Avenida Paulista, a Praça Roosevelt, a Rua 25 de março, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e diversos outros espaços
públicos centrais. No entanto, percebi que cada vez mais que conhecia o centro me distanciava do bairro onde vivia. Acordava, ia para escola e só voltava no fim do dia. E quando comecei a trabalhar e estudar na faculdade a relação se distanciou ainda mais. Ainda reconheço os espaços que passava quando criança, mas é diferente, parece que enquanto estabelecia novas
relações espaciais e desbravava as ruas longínquas desconhecia o que estava
ao meu lado.
Esta organização da vida na cidade é muito comum devido à sua extensão e a polarização das localidades dos postos de trabalhos e bairros de residências e, também, pelo medo constante da violência que assombra a todos. A rua representa perigo e é dentro das casas, dos muros e portões, rodeados de câmeras em constante vigilância que a população se sente segura. O arquiteto George Hazeldon desenhou o Heritage Park, próximo à Cidade do Cabo, como uma verdadeira fortaleza equipada com “cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica das vias de acesso, barreiras por todo o caminho e guardas fortemente armados” (BAUMAN, 2001:27).
Embora haja leituras pautadas na violência do espaço público, há outras visões como a do pesquisador e professor da Universidade de Lisboa, Carlos Neto. Ele pontua que “a rua não é só um espaço onde circulam carros e gente apressada, mas sim um espaço de encontro, descoberta e até desordem"(1999;12). E que o “brincar na rua é em muitas cidades do mundo uma espécie
em vias de extinção” (1999:49). Comprometidos com o pleno desenvolvimento da criança, todos precisamos entender a importância da vivência corporal dela na cidade e valorizar o brincar como sua linguagem pois:
“É a partir das experiências motoras que se realiza o conhecimento corporal, que se compreende e interioriza o sentir, condição indispensável para a construção da própria existência. A criança realiza na motricidade - uso do espaço, qualquer que seja - o reconhecimento do seu Eu, do mundo exterior, do outro, e da passagem à acção. A criança necessita de tempo e espaço para brincar, de forma livre e espontânea, necessita sentir segurança nas actividades de brincadeira que realiza, para que, em simultâneo, se desenvolvam mecanismos mentais de segurança emocional e íntima.
E, neste contexto, o risco, a aventura, o autocontrolo, a iniciativa, o confronto com situações não comuns do seu dia-a-dia, a partilha, a resolução de problemas, o saber estar e habitar o espaço individual e o espaço dos outros são factores/acontecimentos/acções essenciais
para que a criança desenvolva capacidades de vida em grupo, em síntese, para que se torne para além de "indivíduo biológico, em homem social"
(Laborit, 1971)”. (apud MALHO, 200X)
A brincadeira acontece em todo e qualquer lugar. Quando a gente é criança uma simples mancha no vidro pode se transformar num imenso rinoceronte caçando uma borboleta e, também, num grupo de abelhas voando
atrás de um urso. E mesmo tendo possibilidades da brincadeira individual, o
brincar em grupo tem um papel essencial para a socialização das crianças e entendimento da relação com si e com o outro. E a apropriação dos espaços para o brincar das crianças dá uma nova vida a ele.
É preciso lutar para que as crianças sejam reconhecidas como cidadãs plenas de direitos. É preciso construir espaços que sejam para todos - e paracada um, como afirma o desenhista e pedagogo Francisco Tonucci em entrevista à Plataforma Cidades Educadoras. Para que isto aconteça, é preciso a transformação de paradigmas e maneiras de apropriação dos espaços
urbanos pelas crianças e adultos. É preciso o desenvolvimento de políticas públicas, projetos artísticos, arquitetônicos e urbanísticos que tenham como princípio o bem-estar de todos.
Além de transformarmos nossas visões sobre o outro e ressignificar nossas relações sociais e econômicas. Precisamos construir cidades acolhedoras que incluam cada cidadão com suas especificidades começando pelas crianças.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LABORIT, Henri. O homem e a cidade. Mem Martins, Europa-América, 1971.
MALHO, Maria João. A criança e a cidade. Independência de mobilidade e representações sobre o espaço urbano. Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia. Lisboa, 2003.
NETO, Carlos. O jogo e tempo livre nas rotinas de vida quotidiana de criançase jovens. Tempos livres a criança o espaço a ideia. Lisboa, Câmara Municipalde Lisboa, Departamento de Acção Social. 1999.
RNPI. Rede Nacional pela Primeira Infância, 2015.
RNPI. Rede Nacional pela Primeira Infância, 2010.
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