- Ana Galdino -
Foi no sul de Minas, ainda menina, que pude expressar as mais intensas e significativas formas de ser e de estar, num lugar que provocava desejos e afetos. Era um pedaço de terra nas alturas, onde elementos diversos tornavam-se um convite para se viver uma espécie de tempo suspenso; e o que realmente importava era andar passo por passo, não necessariamente tendo algum lugar determinado para se chegar. A relação com o tempo logo transformava os momentos de convivências em rituais. Lá, meus irmãos e eu, bem sabíamos que, para dormir, era preciso que todos ficassem bem quietos para ouvir o coaxar do sapo-martelo (o nosso Zezinho) até que nossos olhos se fechassem e a mãe pudesse apagar o lampião. Hoje entendo que, tudo me dizia que a entrega na exploração do espaço e tempo ia além das dimensões corriqueiras da cidade. Acho que era porque no fundo já sabíamos que passado e futuro pouco tinha graça. Então, através de modos completamente não-formais, selamos um acordo de congelamento do tempo enquanto houvesse brincadeira: Só tempo presente era lei nas terras de Itapeva!
E era algo que transformava a força do querer em seu maior grau de expressão; realização em fazer nada de ‘útil’ e coragem garantida no coração dos bem-aventurados que se arriscassem no espaço de tempo em que o sol nascia até o entardecer. Não sabíamos muito bem o porquê dos adultos monitorarem o nosso tempo de brincar... Mas, para nós, lançar-se n´água, correr léguas e léguas dos gansos brabos, rolar barrancos, e assar bolinhos de barro nas pedras fazia parte do nosso ‘não-tempo’, afinal, tempo contado nunca fez amora virar geléia dentro da minha tigela de folhinhas, nem manga rosa do pé amadurecer de um dia para o outro só pela força do ponteiro do relógio. Era preciso t-e-m-p-o. Tempo para enraizar afetos, amadurecer ideias mirabolantes e florescer em brincadeiras.
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros,serve para poesia.
Manoel de Barros,
em Matéria de poesia.
Itapeva era a terra do sapo Zezinho, dos cachorros que brotavam do mato, das crianças mais sujas e esfoladas que dançavam Macarena de dia e uivavam pra lua a noite. Todas as inutilidades essenciais das memórias de minha terna infância fazem-me lembrar e imaginar o poeta cuiabano Manoel de Barros que, se conversasse a respeito comigo, provavelmente diria que, diante da lembrança, poderia muito bem transformar todo esse barro em matéria de poesia... Fingindo que a conversa existiu, como qualquer poeta fingidor - e com poderes mediúnicos, já tomo para mim o conselho de Manoel. Eis que o cantinho mineiro dos acontecimentos desimportantes, e dos grupos de crianças formados por irmãos, primos, vizinhos, filhos de caseiros e seus respectivos animais livres, tropicaram nas palavras desajeitadas da professora que vos fala. Vinte anos depois, vejo que Itapeva é sim matéria de poesia! Obrigada, Manoel.
Memória de porteira
Para filho com berne, remédio roxo.
Para irmão com febre, banho de bacia.
Para solidão: - vai lá, procura companhia!
E nenhum dia passa em branco
nos vãos do tempo e nos tempos vãos de um céu que já nasce azul, e nos instantes que escorrem pelas mãos.
Seguir bicho-pau para saber onde ele mora,
Vigiar a casa do joão-de-barro que, para ficar pronta, demora,
Esperar o mês de Novembro para subir no pé de amora,
Acordar quase de madrugada e ver qual a rota do tucano.
Tudo que eu vejo, sei,
Tudo que toco, não me engano.
Meninas novas brincam na estrada
E o corpo que balança, pendura a poesia no portão:
As mãos agarradas são as ideias
E o vestido voando é a emoção.
Se poesia de criança é brincar,
Adulto bem que podia aprender poesia com criança,
E abraçar sua bem-aventurança.
Adulto que brinca carrega no coração,
Até o último sopro,
Sua própria iluminação.
Gente crescida carece olhar; Olhar de novo e de novo. E, quem sabe, de repente, tudo fica novo? Enquanto a gente esperar,
E, em mais nada acreditar,
A tarde morre cinza,
E diferença nenhuma vai restar Das músicas das manhãs às trocas das estações, Das sensações que antecedem a experiência, E até dos prazeres da própria vivência;
Nada vai restar.
A tarde cinza vai te apagar,
Se a criança da memória Você não resgatar.
II
Intervalo de Escola
150 horas por semana. 600 horas por mês. 5.400 horas por ano. Esse é o tempo de intervalo que, as crianças e adolescentes da escola particular em que trabalho, têm para proveito próprio - individualidades que se misturam na amplidão dos coletivos; descem as escadas, rampas, correm os corredores compridos e estabelecem - em alto e bom tom - o que querem fazer ou não. Como estagiária e observadora das escolas que percorri durante a graduação, sempre me aproximei do brincar, desse fenômeno envolto de expressividade, prazer, imprevisibilidade, riscos e encontros. Com o curso Qualificação em Agentes do Brincar, pude propor-me uma provocação que, vez por outra, acredito que nós professores e/ou adultos brincantes - sendo aprendizes conscientes do mundo - devemos nos colocar. Acontece que, desta vez, foi uma experiência que me sacudiu. Alertou-me para a urgência em agir nos papéis da docência e também nos meios em que perpasso. Afetou-me com o prazer da experiência e com o exercício da escuta e da proximidade.
Como estagiária, fui incubida a mediar as brincadeiras de intervalo, numa ampla sala de projetos, com armários repletos de jogos diversos. Como é interessante abrir portas e janelas e pensar na disposição de espaços propícios ao brincar! Contribuir para montagem de espaços convidativos tornou-se meu desafio diário (visto que haviam poucos minutos para que eu pudesse pensar/fazer da sala um espaço multifuncional), e, o momento de mexer no espaço, pouco a pouco, movimentou algumas crianças que também envolveram-se nesse processo. Logo, fomos para além das portas e estendemos intencionalmente a proposta para o lado externo, trazendo alguns jogos tradicionais e populares que colaboraram até para invenções de novos jogos. Para expressar a experiência vivida (mistura de uma tentativa de refletir e aplicar abordagens pertinentes estudadas no curso concomitante a vontade constante de aprender na escola com a oportunidade prática), os poemas a seguir apresentam o que pude (vi)ver nesse período.
Corpo ocupa
O corpo na escola
É como em qualquer lugar
É corpo que encarna
as dúvidas
as procuras
o desejo em transitar.
Em espaços abertos, invadem
E mais longe chega o olhar
Horizonte é linha que chama
O que há em mim para o que lá está.
Inquieto, incomoda [os outros e a si enquanto se ajusta
E nunca se conforma com o que não faz sentido para ti... Corpo não fica em casa
enquanto a cabeça vai pra escola
Já dizia o grande sábio: - se quer saber, incorpora! Dos espaços nada sobra, nada passa Tudo colabora. Sentir no corpo é construir
[a própria busca
Que diante da incessante novidade
A visão não se ofusca.
Desaprender
Jogo pronto?
Ninguém está pronto!
Comem Correm Atrasam-se Espatifam-se
Mas o jogo pronto
Torna-se ponto
de encontro e de partida
para uma brincadeira estendida
Nos minutos que antecedem - a música que rompe -
as brincadeiras com a ida. Logo o jogo pronto
torna-se tudo - menos pronto -
e o bambolê de rodar
vira condição de passar
a bolinha de ping-pong
para o jogo dificultar.
Jogo pronto fez nascer
o jogo não-pronto
já não posso esquecer
“Manual de regras para quê?”
Carta de Dixit vira estória
De Uno vira recurso Xadrez pode ser com o corpo
Slime está em tudo
E o Dominó vira entremeio
para se tatear
já que pouco a menina pode enxergar.
Brincar é caminho reverso…
Inverte-se para não saber onde chegar.
Brincadeira de criança é poesia:
Tudo pode. E brincadeira de professora é desaprender
enquanto a criança insiste em mostrar que o melhor é poder expressar
as várias formas de brincar.
III
Olhar sensível
Considera-se o jogo como o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança de se conduzir no mundo, a única forma de atividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que se pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. (Arendt, H. 2000)
Ao acompanhar as brincadeiras de intervalo,da escola em que sou estagiária/mediadora, e também concomitantemente como aluna do curso Qualificação em Agentes do Brincar, além de brincar com o corpo e com a poesia que me surgira, pude perceber que, - através da observação e o exercício da reflexão atrelado às ações rápidas da rotina - que o jogo, a ludicidade, a invenção a partir da construção em grupo, pode disponibilizar alternativas para que as crianças façam suas próprias escolhas, manifestando suas potências, suas ações mais autênticas, seguindo um princípio de significação de experiências; possibilidades que muitas vezes só podem ser exploradas através do fenômeno do brincar.
Vale lembrar que diante das aberturas para estas possibilidades, existirá um corpo em movimento. Afinal, não há um ato que não seja feito com o corpo; e, se pensarmos em escola e educação através da ação, devemos compreender a potência do corpo no processo. O jogo, o brincar, e as mais diversas tecnologias que a escola pode oferecer às crianças sempre a colocarão em estado de movimento (quer a escola queira ou não); a ação torna-se geradora de um esforço e este esforço, então, desafiará a própria criança à lidar com um tipo de conhecimento que antes era desconhecido. Brincar é pesquisar, criar, descobrir, (moviment)ação. Brincar é poesia. Poesia é transver. “É preciso transver o mundo”, disse Manoel de Barros.
Referências
ARENDT, H. A crise na Educação. In: Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 3ª reimpressão da 5ª edição de 2000. São Paulo, Perspectiva, 2005.
BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Editora Alfaguara, 2015.
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