Sempre brinquei muito, a infância no interior e nos anos 80/90 nos permitiu brincar com muito mais liberdade do que percebo hoje em São Paulo. Apesar de toda essa liberdade alguns padrões nos podavam e é sobre isso que decidi falar. O texto "Conhecendo a si próprio e ao outro. Valores éticos e humanos" de Marilena Flores martins, demonstra o peso que o brincar tem na formação do indivíduo, que consequentemente fará diferença no mundo (para o bem ou para o mal).
"Quando as crianças têm a oportunidade de escolher como, onde e com quem querem brincar, elas estão desenvolvendo muitas habilidades sociais como: organizar sua agenda, negociar com outros sobre o que fazer, construir relações sociais, aprender a dominar a frustração quando perdem o jogo etc. Essas habilidades colaboram para a construção de um indivíduo único, resiliente, suficientemente capaz de estabelecer vínculos positivos e relações de confiança em si e no outro. Estas são as bases para que ele seja reconhecido como pessoa e como cidadão, pronto para desempenhar seu papel no mundo."
Fiquei surpresa quando me dei conta do quanto a separação de gêneros esteve presente em toda minha vida, única menina da casa, parecia ser a única da vizinhança. Enquanto meus irmãos estavam na rua com muitos outros meninos experimentando as mais diversas brincadeiras, explorando todas as possibilidades motoras e interagindo com a diversidade de estilos de vida, eu estava em casa, brincava livre no quintal mas sozinha.
"Meninos detestam meninas, elas são muito frágeis, delicadas". Enquanto minha mãe buscava uma amiguinha para mim (todas estavam escondidas em suas casas), eu seguia brincando com meus amigos imaginários, me aventurando com os brinquedos espalhados pelos irmãos que eu observei enquanto brincavam e fui reproduzir depois que eles saíram para outras aventuras. Nao sofria com esta realidade, mas hoje percebo quantas habilidades deixei de desenvolver por conta de uma sociedade que impõe o estilo de vida limitado pelo gênero.
A questão de gênero não era tão explícita em minha casa, minha mãe (professora) até tinha ideias muito evoluídas sobre essas questões, porém não era desconstruída o suficiente e sempre caia em contradições (inconscientemente) em busca da aceitação social. Por outro lado, de que adiantaria eu poder brincar na rua livremente se as outras meninas não podiam e os meninos não queriam brincar comigo?! Eu também não queria brincar com meninos, sempre que estava brincando com algum aparecia um adulto ou até mesmo uma criança mais velha pra dizer que éramos namoradinhos e reforçar essa diferença de gênero.
Graças a meus irmãos, tive mais contato com as "brincadeiras de menino" do que muitas amigas minhas. Na falta de um goleiro lá estava eu, em dias de chuva em que todos estavam presos em casa eu tinha oportunidades de interação com esse universo, mas sempre com as ressalvas, cuidado, medo, timidez afinal uma menina não é capaz de certas estripulias. É o que ouvimos desde sempre.
Conforme fui ficando mais velha, conquistando um pouco mais de autonomia, tive mais acesso a rua, a brincadeiras mais desafiadoras, mas eu já estava defasada, me sentia um saco de batata. A combinação de mudanças no corpo mal explicadas permeadas por inúmeros tabus e associada ao senso comum de que certas atividades/atitudes são impróprias para meninas foram me tornando cada vez mais refém desses estereótipos.
Na escola, a separação começa na fila da entrada, meninas de um lado meninos do outro o recreio livre permite algum tipo de interação, mas a esta altura já estamos pré-moldados a nos manter afastados. Um local onde essas diferenças ficavam um pouco de lado era o parquinho da escola.
Lá a interferência de adultos era menor e havia um brinquedo que era “A sensação!”, um escorregador enorme, que foi construído aproveitando um barranco do terreno, a escada para chegar até o topo era cavada na terra degrau por degrau e sem corrimão, um desafio a parte que nos fazia escalar usando mãos e pés, só de descrevê-lo sinto o frio na barriga. Já no balanço e na gangorra era possível observar o quanto estávamos presos em nossos papéis de menino e menina. Enquanto entre os meninos competição era para ver quem pulava mais longe do balanço em movimento as meninas no máximo comparavam quem balançava mais alto ou dava mais voltas na corrente. Ai da menina que resolvesse dividir a gangorra com um menino, logo ficaria '’de castigo" presa no alto da gangorra para que ele mostrasse sua força para o grupo a ela cabia gritar por socorro para demonstrar sua fragilidade. Dizem que isso é culpa da genética, que meninos e meninas nascem com diferenças biológicas que os tornam aventureiros ou frágeis como se o posicionamento cultural da sociedade onde nascemos não tivesse influência sobre o modo de agir e reagir das crianças perante o "mundo azul ou cor de rosa" que lhes é apresentado desde o ventre materno.
Quanto mais o tempo passa menos brincadeiras e mais distâncias entre meninos e meninas. As aulas de Educação Física divididas entre futebol para os meninos e vôlei ou dança para as meninas, ninguém era impedido pelo outro grupo de participar mas era ridicularizado pelo próprio grupo. A menina que jogava futebol com os meninos e o menino que dançava com as meninas eram motivo de muitos comentários maldosos.
Na verdade são provas vivas de que as diferenças não são genéticas e sim impostas pela sociedade como explica o autor de “Cultura: um conceito antropológico”, Roque de Barros Laraia “o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada”.
Sabendo que o brincar livre é importante para o desenvolvimento físico, motor, mental, emocional e cognitivo, percebo com ainda mais pesar o quanto a separação entre gêneros limita e até impede que meninos e meninas desenvolvam certas habilidades importantes para a vida.
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